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Reflexões Sobre Quarentena, Caixa de Ferramentas, Caixa de Brinquedos e Legal Design

Esse momento único da humanidade, uma pandemia mudou o modo de viver das pessoas ao redor do mundo, como jamais poderia ter se imaginado, e que ainda nem terminamos de vivenciar, e mudou a minha vida, minha rotina profissional e meu olhar.

Mudou tudo? Não, valores e princípios pessoais não mudam, eles se fortalecem na adversidade e passamos a olhar mais atentos o que antes passava rápido. E foi isso que aconteceu, depois de alguns meses em home-office, quase cinco meses com rotina totalmente alterada e interna na minha casa, eu tive mais tempo para estudar e trabalhar, pois diminuíram os deslocamentos que afetavam minha jornada produtiva.

No meu lugar de fala de mulher branca, já salva pelo nascimento só por ser branca, como diz o escritor e historiador Leandro Karnal[1], que muito bem pontua os privilégios imerecidos que essa condição determina no Brasil. Advogada com escritório próprio, dona da minha agenda, com família que é uma equipe em que todos tem funções na rotina da casa, sou absolutamente privilegiada e reconheço essa situação, especialmente vivendo em um país com tanta desigualdade, e para tanto é necessário retribuir de alguma forma para a sociedade. Além de apoiar entidades com advocacia pro-bono, doações, trabalho voluntário, divulgação de campanhas, participação em iniciativas, como a Rede de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência da minha cidade, e sempre disposta a contribuir em outras ações, também pensei: vou fazer todos os cursos que puder para me qualificar melhor para minhas atividades profissionais, para ser uma advogada diferenciada no atendimento dos meus clientes. E fui fazendo cursos, adoro estudar e adoro um certificado, desde cedo, guardo todos, ponho no Lattes e no LinkedIn.

Enfim, passado um tempo, comecei a juntar algo que me parecia antes impossível, misturar minha caixa de ferramentas e minha caixa de brinquedos. Você pode estar se pensando que coisa é essa e o que tem relação com o direito. Bom, a ideia de caixa de ferramentas e caixa de brinquedos não é minha, é do saudoso escritor Rubem Alves[2], apenas adaptei. Caixa de ferramentas são as formações acadêmicas, as habilidades, as competências profissionais que as pessoas desenvolvem para realizar seus trabalhos, o que é útil ou serve de utensílio. Caixa de brinquedos são as coisas que trazem prazer, servem para criar, servem para usufruir, são relacionados ao amor. E os adultos quase sempre se esquecem das suas caixas de brinquedos, uma crítica feita por esse brilhante escritor e que concordo plenamente.

Há alguns anos, a partir da maternidade, da convivência intensa com meus filhos, e com uma vida mais equilibrada, voltei a desenhar, voltei a ler sobre arte, voltei a brincar de brincadeiras de crianças. E adorei, não paro mais. Ainda mais agora, depois da pandemia, em que tudo se conectou.

E como se conectou? Sempre gostei de tecnologia, desde jovem já queria estudar computação porque adorava matemática, mas o Direito falou mais alto e fui para as Arcadas, que me impressionaram por tudo, e muito pelo espaço arquitetônico que adoro, as classes com quadros pintados à óleo dos antigos professores que davam nomes às salas, aquilo me encantava, uma jovem caipira, vinda do interior para estudar na Capital, era um sonho. As críticas, e sempre as há, que elite que formou e forma, o que essa mesma elite traz de retorno à sociedade, eu as tenho, mas não é objeto dessa reflexão. Fico apenas com a imagem estética que também me marcou.

Na graduação tive contato com os primeiros computadores, mesmo que eu ainda escrevesse meus trabalhos universitários numa Olivetti portátil, que era objeto de luxo naquela época, com os aprendizados obtidos pelo curso de datilografia na adolescência, imaginem só. Lá no final da faculdade, em 1990, frequentei a sala de Computação para os estudantes, fiz curso de DOS (alguns nem tem ideia do que é isso, é o programa operacional usado antes do Windows), e achava o máximo.

No meu primeiro emprego como advogada tive uma secretária que me ensinou a mexer no Windows, era uma novidade e tanto, lá também participei de um consórcio para comprar meu primeiro computador e uma impressora colorida, o máximo para a época. Estava entrando verdadeiramente no mundo tecnológico, em 1993.

Quando voltei para Piracicaba e comecei a trabalhar com meu pai, vim com meu “super” computador e minha impressora matricial colorida: nossa, era perfeita, levava meia hora para imprimir 20 páginas! E tudo foi evoluindo. Entrei em cursos de computação básica, nem se chamava Office ainda, em 1995, e no final desse ano, uma paixão nascia, a computação gráfica, ambos os cursos profissionalizantes fiz no Senac de Piracicaba.

Passei a usar o Corel para tudo, inclusive fiz trabalhos freelancer, para meu deleite, nas horas de folga da advocacia. Assim que a internet chegou na minha cidade logo contratei, era discada em 1995/1996, nesse período o celular já estava na minha vida e nunca imaginei que em duas décadas, tudo estaria na palma da minha mão. Fiz jornais para a minha igreja, fiz fluxogramas em ações de mulheres vítimas de violência para a Rede da qual faço parte.

Aproveitei para incluir tudo isso nas minhas petições, com gráficos, com arvores genealógicas: usei isso no meu primeiro inventário em 1996, pois tinha tanto herdeiro que ficava mais fácil para o juiz entender quem era quem. Facilitava a montagem dos processos, especialmente nos relacionados ao Direito Médico, pois incluir fotos e esquemas relacionados ao tema ajudava na compreensão de um assunto sempre complexo.

Durante o mestrado, novamente nas queridas Arcadas, o Prof. Eduardo Marchi, na matéria de Exegese do Direito Romano, lá pelos idos de 2001, instigava os alunos a estudarem outros interesses, pois narrava que um “jurista” deve ter um conhecimento pleno do mundo em que vive, e parte da sua aula era para exposição de temas do cotidiano, de artes, de assuntos que me fascinavam; por conta desse incentivo, passei a frequentar mais os museus da cidade, ir à exposições temporárias, mesmo morando no interior, pois sempre adorei arte, arquitetura e design.

Depois do mestrado concluído, continuei a utilizar meus conhecimentos de design para realizar minhas palestras e aulas, mas com os filhos pequenos e o falecimento de meu pai, que também era meu sócio no escritório, houve um hiato, pois foquei no desempenho formal, mesmo sem deixar totalmente a minha caixa de brinquedos de lado.

Há alguns anos voltei às leituras sobre artes, assistindo séries de designers, decoração, psicologia do ser humano, entendimento do ser de uma forma geral, mas há dois anos passei por uma transformação na imagem do meu escritório; já não era sem tempo, modernizei o site, o logo, as mídias sociais e o lado designer retornou com tudo. Ainda achava que era só um lado que, mesmo de lazer, me servia com utilidade no meu dia a dia.

No ano passado a proteção de dados e o compliance cresceram como forma de trabalho, mesmo que já pensasse no assunto sempre, com outros nomes, tais como responsabilidade civil, ética, valores e missão de vida. E a tecnologia voltou à cena fortemente, pois ao estudar a vindoura Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), fiquei ainda mais interessada nas novas tecnologias, no design, nas informações a serem traduzidas para os titulares de dados pessoais, e constatei que a cada dia a minha caixa de brinquedos voltou a se misturar com a minha caixa de ferramentas, algo que só ia aumentando.

Faz pouco tempo que escutei o termo Legal Design. Fiquei intrigada, e quando fui estudar a questão pensei: isso que eu fiz a vida toda e nem sabia. Pois, Direito, Tecnologia e Design eu misturei a vida toda, sempre procurei descobrir formas mais simples de solucionar uma questão para o cliente, ou para deixar a palestra mais clara para os ouvintes, quer para médicos na área de Direito Médico, quer para mulheres de todas as idades na área de Direito de Família e, em especial, sobre violência doméstica e direito de escolha, mas sempre com uma escuta qualificada para ouvir dores e tentar acomodar as questões mais doloridas.

Assim, o Direito Médico, que sempre esteve na minha área de pesquisa, foi um grande facilitador para o estudo do Direito Digital, em especial, da Lei Geral de Proteção de Dados, que cuida, sobretudo de direitos fundamentais, a matéria que mais gostei desde as aulas com a minha querida Prof. Silmara Chinelatto, no quinto ano da faculdade, e também minha orientadora no mestrado.

Assim, o Direito de Família, que adoro porque me identifico profundamente, e onde atuo com amor e acolhida para os atores desse drama, que só quem vive ou viveu algo parecido sabe do que se trata, foi um fator integrativo para estar presente no IBDFam, e estar participando da Comissão de Direito de Tecnologia, o IBDFam Tec, com reuniões instigantes e novas maneiras de atuar e acolher em tempos tecnológicos.

Da mesma forma, o Direito Cooperativo, onde atuo desde o início de minha carreira, e do qual extraio os princípios de cooperação, de união de esforços para o bem comum, e a possibilidade de implementação de um projeto a somar no cotidiano dos colaboradores que assessoro em cooperativas médicas, levando o letramento digital, princípios de segurança da informação, conteúdo que facilitará a inclusão digital de muitas pessoas.

Por fim, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e o Legal Design vieram para unir, aumentar e transformar minhas caixas de ferramentas e de brinquedos em um lindo e colorido conjunto de instrumentos customizados, que ao mesmo tempo em que são úteis, também podem ser prazerosos.

Nunca pensei que aos cinquenta anos, meio século de existência e vinte e sete anos de advocacia, iria ter tanta satisfação pessoal e profissional.

Que essa minha experiência pessoal possa estimular a você a estudar, e, sempre que possível, conciliando trabalho e prazer dentro do possível. E que eu possa ajudar mais e melhor meus clientes e amigos.

Piracicaba, 15 de agosto de 2020 (em quarentena, em home office, em casa durante a pandemia do Covid-19, com fé e com esperança).

Rosália Toledo Veiga Ometto.

[1] Canal Prazer Karnal. Racismo e autoritarismo contemporâneo | Djamila Ribeiro e Leandro Karnal. Transmitido ao vivo em 25.06.2020, https://youtu.be/b_vUQ7SGNJw (39m53s)

[2] ALVES, Rubem. Do Universo à Jabuticaba – Duas caixas. São Paulo: Planeta, 2015, p. 29/30.

Autor

Rosalia Toledo Veiga Ometto

Data

15/08/2020

Advocacia como ferramenta de Percepção, Educação e Ação. Olhar no futuro, releitura do Direito com base na Ética.

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