Hoje faz 13 (treze) anos que vi meu pai pela última vez, foi, exatamente, às 10h00 do dia 07.05.07, quando seu caixão foi fechado e seu rosto desapareceu diante de nós, filhos, esposa, parentes e amigos. Foi um dos dias mais tristes da minha vida. Tudo mudou depois disso, tudo muda depois de grandes perdas, mas tudo pode ser usado para continuar a nossa caminhada, e foi isso que fiz e que muita gente o fará depois dessa pandemia, dessa calamidade mundial.
O mundo já mudou, o mundo conhecido não existirá mais, alguns já perceberam isso, outros vão, talvez, demorar para perceber que tudo já está diferente, que tudo será de outro jeito. Que jeito? Ainda não sabemos, porque estamos vivendo, mas algumas vivências nessa quarentena podem dar algumas pistas, cada um terá que achar as suas, em geral, dentro de si mesmo.
Hoje faz 13 (treze) anos que perdi meu pai, meu sócio, meu mentor, minha maior segurança. Em menos de uma semana tudo mudou, nada estava previsto, nada dava sinais que tudo iria mudar. Meu pai era considerado jovem naquela época para morrer, tinha 65 (sessenta e cinco) anos, estava em plena atuação profissional, sua capacidade intelectual plena, seu corpo sem grandes sinais dos quais pudessem dar algum alerta, era hipertenso e obeso como muitos já somos ainda mais jovens. Tinha feito cirurgia cardíaca 10 (dez) anos antes e estava recauchutado como dizia. Talvez estivesse um pouco melancólico com a chegada da idade, mais comedido em seus excessos. Muito mais saudável do que 10 (dez) anos antes, teve um AVC num domingo cedo, sendo que estava no sábado num simpósio de trabalho na véspera, em Campos do Jordão. Viajou com minha mãe, voltou, almoçou com meu irmão e as netas e quando entrou no carro explodiu o AVC. Foi internado, tive uma oportunidade de falar com meu pai apenas, antes dele entrar em coma, agradeci por tudo que ele já tinha feito por mim, disse que o amava e que ele ficasse tranquilo que eu cuidaria de tudo. Suas últimas palavras para mim, seu haikai: “Eu sei...”.
O mundo tem se colocado em quarentena e orientado os idosos a ficarem em casa. A maioria das pessoas acima de 60 (sessenta) anos não se considera idosa, se considera super bem. Uma boa parte das pessoas acima de 80 (oitenta) e de 90 (noventa) anos está na ativa, vários ainda trabalham. Muitos são arrimos de família ainda. Todo mundo foi pego de surpresa com mortes inesperadas, tal como eu com meu pai. E muitos, infelizmente, ainda o serão, com os pais, com os filhos, com os amigos, com os colegas de trabalho, com as pessoas referências em suas áreas.
Hoje faz 13 (treze) anos que perdi meu pai, um homem forte, íntegro, sociável, amoroso, cuidadoso com a família. Para ele, nós os filhos (eu e meus dois irmãos) éramos prioridade acima de tudo, junto com minha mãe. Desde sempre nos sentíamos muito especiais, ele garganteava para todos como seus filhos eram especiais, sempre enaltecendo nossas qualidades para quem quisesse ouvir e para quem não quisesse ouvir também, porque meu pai foi um homem autêntico, que se fez sozinho, com os ensinamentos da vida, pois ficou órfão de pai muito jovem, solteiro ainda. Como faz falta saber que não podemos mais contar com a ajuda dele para qualquer coisa, para um apoio verbal, como diria meu filho, mesmo que nem viéssemos a pedir nada, saber que ele estaria ali e que poderíamos contar com ele já bastava muitas vezes.
O mundo tem sentido essas perdas de pessoas que são referência para suas famílias, a saudade de alguém forte, impactante, ímpar, jamais passa, ela se acomoda dentro de nós. Ela encontra um cantinho no coração para nos aquecer com as lembranças que nos trazem esperança, porque teremos que seguir. Imagino a dor de muitas pessoas que estão perdendo seus entes queridos e, muito pior que minha história, agora nem pode ficar junto no hospital, nem se despedir como o fiz como o meu pai ainda quente que acabara de morrer, como fiz durante todo o velório, que tirou de mim a preocupação de encostar em pessoas mortas, pois, abracei, beijei, acarinhei, chorei e ainda choro ao lembrar, mas muitas pessoas não terão essa oportunidade de fazer seu luto durante a quarentena, sem velórios, sem funerais dignos de pessoas que amamos, pois há determinações governamentais para essa distância pensando no bem coletivo, mesmo que o individual sofra, uma tragédia.
Hoje faz 13 (treze) anos que perdi meu sócio, um advogado brilhante, com uma visão ampla e magnífica das situações que lhe eram postas para serem solucionadas, sempre encontrava uma solução para os conflitos apresentados. Trabalhava com qualquer pessoa, tratava todos com a mesma dignidade. Deixou um vazio imenso que jamais tentei ocupar, mesmo porque seria impossível. Até hoje recebo homenagens pelo grande advogado que foi, pelo grande líder que foi, pelo grande conciliador que foi. Isso eu aprendi com ele. O caráter profissional que tenho hoje, muito se deve pelos ensinamentos éticos que me passou na prática do dia a dia, não dava aulas para mim formalmente, mas trabalhar com ele e ser sua sócia, também por 13 (treze) anos foi a maior lição profissional que tive na vida. Era um homem que respeitava as pessoas, as suas dores e valorizava o ser humano e as suas origens. Um fato que demonstra bem sua falta é haver um espaço de convivência intitulado com seu nome, numa das cooperativas que assessorou desde sua fundação, o mais curioso era que não era um dos cooperados, mas um simples colaborador, prestador de serviços. Homenagem essa que ocorreu depois de vários anos de sua morte. Isso foi muito significativo para mim e para minha família.
O mundo tem perdido profissionais de diversas áreas, incomparáveis, insuperáveis, que jamais terão seus lugares preenchidos, substituídos. É uma falta plena, um local que se torna quase um símbolo, talvez possamos dar ao nome disso de legado, mas como nos faz falta as pessoas em si, mesmo tendo seu legado, a falta do que essas pessoas ainda poderiam produzir, se não morressem tão abruptamente. Quantos cientistas, quantos coveiros, quantos músicos, quantos enfermeiros, quantos artistas, quantos médicos, quantos jovens que ainda iriam produzir muito e foram e serão ceifados por essa calamidade, quanta perda de talentos em todas as áreas. Quando buraco, quanta falta, quanto caminho que terá que ser desviado para outro rumo. Quanto luto que poderia ter sido evitado, e quantas pessoas ainda caminham sem preocupação quando poderiam estar em casa. Muitos não têm opção, precisam trabalhar para que tantos possam ficar em casa. Quanta falta de sensibilidade e de empatia por quem está na linha de frente do front.
Hoje faz 13 (treze) anos que perdi meu mentor. Um homem íntegro, honesto e lembrado por todos como um grande homem, duplamente, porque era alto, barrigudo, jamais passaria desapercebido em qualquer lugar que chegasse. Um homem alegre, brincalhão, ímpar, que tinha uma confiança extraordinária, porque tinha muito claro suas prioridades, não era aventureiro, pelo contrário, super pé no chão, mas com uma certeza que as coisas se ajeitariam com o tempo e com o esforço desempenhado. Tinha fé sem ser religioso (a religiosidade era da minha mãe), era bondoso, era caridoso, era franco, era autêntico, era amado ou odiado, mas não se preocupava com nada disso. Era o centro das atenções, sem fazer qualquer circo para isso, pelo contrário, sentava-se em qualquer lugar, ia a qualquer lugar do mais humilde ao mais glamoroso com o mesmo jeito peculiar de ser, mas, o que mais gostava era de estar com a família e com os amigos à sua volta. É um homem lembrado pela maioria das pessoas que conviveram com ele, muitas pessoas ainda me param para falar de história dele para mim, uma delícia.
O mundo está em franca decadência de mentores, de pessoas a quem se possa espelhar, quer na família, quer na profissão, quer na política, quer no mundo. As relações pessoais estão deterioradas, muitas famílias nem sairão dessa calamidade sem sequelas, quer físicas mesmo, quer emocionais, quer psicológicas, quer financeiras. Muitas famílias serão desfeitas, por mortes, por falência financeira e emocional, muitos inventários ocorrerão, muitos não terão nada para inventariar, talvez algum objeto de memória afetiva ou não, muitos divórcios ocorrerão pelas incapacidade das pessoas, da falta de investimento no casal antes da pandemia, da falta de respeito entre os cônjuges, pelo abuso físico, mental e psicológico, que vão se aflorar nesse tempo, e os casamentos que já estavam falidos anteriormente, não se sustentarão, mesmo tendo sido empurrados, às vezes durante anos, por conveniência, por medo da mudança, por status, por falta de perspectiva, por medo de morrer.
Hoje faz 13 (treze) anos que iniciei minha jornada pessoal, familiar, profissional de forma a dar conta sozinha, sem pai, sem sócio, sem mentor. Terminado o enterro, voltei ao local do velório agora vazio, sem velório algum acontecendo. Fique sentada no banco por mais de meia hora, cercada de algumas amigas maravilhosas, sem coragem de voltar para casa, para um casamento falido. Criei coragem, fazendo jus pela pessoa que sempre fui, batalhadora e responsável. Saí do velório e fui para uma casa que morava, enorme, fria e indiferente à minha dor, voltei porque meus filhos estavam em casa com o pai, minha filha com 04 (quatro) anos e meu filho com 04 (quatro) meses. Voltei por eles, porque, como era para meu pai, meus filhos e minha família são a minha prioridade sempre. Sai daquele casamento falido 13 (treze) meses depois, com um punhado de dores, mas com minhas maiores riquezas meus filhos.
O mundo entenderá que seguir em frente não é fácil, não é singelo, não haverá manual de instruções para enfrentar o mundo sozinho, mudado, triste e dolorido, mas entenderá, sobretudo, que temos que ter esperança em construir um futuro melhor do que estamos vivendo nesse momento tempestuoso de pandemia, de calamidade de pública. O mundo encontrará uma forma de se reinventar, de se transformar, em algo melhor, ou em algo pior, ou os dois, dependendo do recorte feito. Porque nem tudo é bom nem tudo é ruim, nem tudo é certo ou errado. Tudo tende a ser diferente, e se nos adaptarmos à nova realidade, de uma forma menos reativa, sem gastar energia em batalhas perdidas, poderemos sobreviver com os recursos de que dispomos e tentar correr atrás de outros. O mundo poderá ser mais generoso com os desafortunados ou não, o mundo caminhará para uma desigualdade intransponível ou poderá ser mais solidário, cabe a nós criamos pontes para que a desigualdade possa não ser tão distante de nós, que certamente como eu, muito mais privilegiados do que merecemos. Que essas pontes sejam mais curtas e em maior número.
Hoje faz 13 (treze) anos que “recomecei” minha carreira profissional, pois, apesar de ter 15 (quinze) anos de experiência como advogada à época, poucas pessoas me associavam à frente do escritório que achavam que era só do meu pai. Muito provavelmente pelo fato de ser mulher e filha, e que talvez eu não tivesse competência técnica para enfrentar as demandas dos clientes. Isso porque era sócia formal e na prática de meu pai, era responsável por toda a área contenciosa do escritório. Curioso é o fato de que no dia que cheguei para trabalhar aqui em Piracicaba, com ele, em 1994, ele me deu a sua sala, nunca mais voltou ao expediente no escritório (só nos poucos meses de licença maternidade que tive com meus dois filhos). Ele passou a trabalhar de casa e ficou com a parte de reuniões e viagens para os clientes. Nunca mais escreveu uma petição sequer. Era eu quem administrava o escritório, quem pagava as contas, quem cuidava de todos os pareceres e de todos os processos, de todas as audiências. E isso, mesmo já tendo feito meu mestrado na USP (mesma faculdade da minha graduação também), publicado meu livro, minha dissertação de mestrado (que foi meu pai quem conseguiu o patrocínio de diversas cooperativas que assessorávamos e porque ele mesmo achava e dizia que era o máximo meu livro para todo mundo). Mesmo assim, os clientes não me reconheciam como adequada para o comando, escutei isso uma semana depois do meu pai falecer. Segurei o choro (porque mulher profissional que chora pelo falecimento do pai é mole, homem profissional que chora pelo falecimento do pai é um cara nobre, sensível, presenciei isso). Mesmo assim, fui e estou aqui e ainda estarei aqui e irei sempre, sou dona do meu negócio, do meu potencial profissional, não tenho medo do trabalho.
O mundo terá que se reinventar, terá que mudar o jeito de agir e de fazer negócios, alguns acabarão, outros ficarão menores, outros crescerão, outros nascerão, mas tudo será diferente, tudo terá outro olhar, tudo terá que ser repensado. As relações de trabalho, as relações de consumo, como se relacionar com o diferente, e quem consegue se sair do velório e caminhar, quem conseguirá no luto encontrar forças para seguir, ainda que em passos lentos, ainda que em menor quantidade, mas quem conseguir sair, conseguirá caminhar, porque é possível. Não sem dor, não sem esforço, não sem choro, não sem persistência, não sem ajuda e colaboração, não sem auxílio de profissionais que possam ajudar a superar o luto. Superar todos os tipos de luto, da vida que não será mais como antes, da perda do ente querido, do sonho destruído, do sonho desmoronado, do sonho não realizado, do casamento falido, do casamento que sonhava ser o que não foi, da profissão que acabou, da profissão que foi interrompida, do emprego que se foi, do emprego que não se consegue encontrar, da fome que passou, da fome que ainda passa, do horror visto, da vida não vivida, ou seja, de qualquer luto. O mundo terá que escolher se fica no velório e chora como as carpideiras, ou se caminha, ainda que em luto porque uma hora as coisas vão se acomodar.
Hoje faz 13 (treze) anos que, sem prever ou saber, eu me preparo para estar mais serena nesse momento de pandemia e de calamidade mundial. Eu escolhi seguir com meu luto principal desde a morte de meu pai, depois do luto do casamento sonhado que não foi da forma sonhada, da carreira sem percalços que imagina e vivi por 15 (quinze) anos. Escolhi, sobretudo, ser uma mãe melhor para meus filhos, ser uma profissional melhor para meus clientes, ser uma mulher melhor para meus amigos, ser uma cristã melhor para os que precisam de mim, e, finalmente, ser uma esposa melhor para o meu atual marido, a quem eu devo o colorido da minha nova vida. Tudo isso ocorreu com muita luta e muito choro, muitas dores que carrego no corpo ainda hoje, mas que trato e tratarei sempre, porque ninguém sai sem sequelas, mas aprendemos com nossas cicatrizes.
O mundo e as pessoas podem escolher como vão passar essa quarentena, acumulando energia boa, lutando para sobreviver, lutando para conseguir seguir, alguns, afortunados, com aquisição de conhecimento pessoal, de conhecimento profissional, de conhecimento cultural, avaliando os fatos vivenciados e não apenas passados como as timeline das redes sociais que passam batido e que nem lembramos o que vimos. Aquele que puder e escolher estocar energia consistente, refletindo sobre os acontecimentos vivenciados, sendo empático com as dores do outro, tentando ser mais afetuoso com o próximo, a meu ver, estará melhor do que aquele que ficar chorando ou tentando achar culpado para tudo. Que é diferente de responsabilizar Estados por falta de políticas públicas, porque isso era para ter sido feito como fator preventivo, agora teremos que correr atrás do prejuízo enorme de perdas humanas e perdas econômicas irreparáveis, essa cobrança de responsabilidade estatal deverá ocorrer sem sombra de dúvidas.
Hoje faz 13 (treze) anos que escolhi sair do velório com uma coragem que nem sabia que tinha, e, como digo sempre aos meus filhos, corajosa não é a pessoa que não tem medo de ir em frente e encarar a dificuldade, mas é quem não sucumbe à ela. Passei muito anos vivenciando as consequências fáticas desses eventos de luto, mas aos poucos, com muita leitura de qualidade, com muito estudo, com muita ajuda de profissionais, de amigos e da família, fui caminhando, e seguirei caminhando. Errei muito nessa vida, como todo mundo, mas meu caminho segue um objetivo que é ser melhor que fui ontem e amanhã melhor que hoje. De nunca dormir sem resolver qualquer a pendência pessoal, grande ou pequena, de dar boa noite aos meus filhos e ao meu marido, de dizer que os amo, de agradecer tudo que tenho, de agradecer por tudo que passei, porque tudo isso me fez ser o que sou hoje. Acompanhado do equilíbrio e da serenidade que meus cinquenta anos também me trouxeram.
Quanto tempo ainda caminharei? Não sei o tempo exato, mas sei que caminharei tentando fazer e ser melhor, a cada dia, e se não conseguir, pelo menos me empenhei. A vida seguiu, a vida segue e a vida seguirá.
Piracicaba, 07 de maio de 2020 (em quarentena, em home office, em casa durante a pandemia do Covid-19, com fé e com esperança).
Rosália Toledo Veiga Ometto.