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Cadialina. Breves considerações sobre relacionamento entre médicos e pacientes.

Como ficar indiferente em face da notícia destacada na Folha de São Paulo, caderno cotidiano, de hoje, 09.11.2012, sobre um médico que teria indicado o seguinte remédio para uma mulher da periferia de Salvador – BA: “cadialina”, como emagrecedor.

A mulher narra que, durante consulta médica, questionou ao profissional onde compraria tal medicação, sendo informada que deveria ir a um ferreiro e comprar cadeados, para colocar em diversos lugares, tais como sua boca, sua geladeira, seu freezer, seu cofre, entre outros. Segundo a reportagem, o médico refutou as alegações dizendo que utilizou uma “linguagem figurada” com a paciente.

Não se trata de uma análise do caso concreto, pois o órgão competente para tal análise, sob a ótica ética, é o Conselho Regional de Medicina da Bahia, através do procedimento administrativo da sindicância, já instaurada conforme a notícia acima referida. Contudo, essa narrativa permite algumas considerações sobre o relacionamento entre médicos e pacientes.

 O Código de Ética Medica (Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1931/2009) estabelece no capítulo dos princípios fundamentais que a Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano, que deverá ser exercida sem discriminação de qualquer natureza e com toda a atenção do médico voltada à saúde do paciente, que deverá agir com máximo zelo e absoluto respeito e sem jamais utilizar seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral[1]. Em seu artigo 23, o Código estabelece expressamente que todo o ser humano deve ser tratado com civilidade e consideração, respeitada sua dignidade sem discriminação de qualquer forma ou pretexto[2].

A questão ética é fundamental para a perspectiva dessa análise, pois as relações humanas estão se deteriorando a cada dia, e os valores e princípios mais nobres da civilização moderna são cada vez mais postos de lado. No que interessa ao dia-a-dia do médico, sabemos que a falta de estrutura e segurança na área pública e os problemas de relacionamento com as clínicas e hospitais privados contribuem para um quadro de tensão permanente, mas o paciente não pode ser punido por esses problemas.

Quando se tem uma notícia como a da “cadialina” não se pode afirmar que o caso concreto ocorreu daquela forma, mas dois pontos são certos: primeiro, a paciente está se sentindo prejudicada, humilhada e segundo, toda a classe médica tem seu prestígio abalado, pois ao leitor fica a impressão que esse tratamento é comum, ou ao menos recorrente.

O relato da paciente gera indignação, mas isso é positivo, porque através da repulsa a esse comportamento surge a possibilidade de mudanças, de correções, de adequação da classe médica à nova realidade e da população de exigir o tratamento condigno que merece receber.

Isso tudo se deve especialmente pela falta de urbanidade das relações humanas, da falha de comunicação entre pacientes e médicos. Contudo, ao médico cabe a atuação com respeito, civilidade, para se atingir o fim da medicina que é a saúde do ser humano. Quando isso não acontece, toda a classe médica é prejudicada, porque ações negativas são muito difíceis de serem esquecidas e as ações positivas são consideradas meras obrigações.

Os bons médicos, que, felizmente, ainda são a grande maioria, são os maiores prejudicados por ocorrências dessa natureza, mas a eles fica a sugestão: a de se mobilizar pela urbanidade, inclusive solicitando uma postura respeitosa dos colegas que não atuam adequadamente. Ao médico cabe o bom conceito da medicina, e sua atuação é diretamente responsável pela opinião que a população possui da classe.

Infelizmente, a falta de urbanidade, respeito e boa educação não é somente uma vertente da classe médica, mas de toda a sociedade, mas, quando esta ação ocorre de quem deveria cuidar da saúde é mais aviltante. Essa situação já foi reconhecida como um problema de ordem social, gerando uma lei estadual sobre direitos dos pacientes que estabelece como determinação legal o que deveria ser uma situação inata do ser humano bem educado e respeitoso, mas,  por má formação pessoal e profissional, teve que ser tutelada pela legislação infraconstitucional para que o cidadão, caso desrespeitado, obtenha respaldo jurisdicional.

Esse é o objetivo da Lei estadual 10.241, de 17 de março de 1999, conhecida como a lei Mário Covas, e para a análise presente destacamos seu artigo 2º, elencando como direitos do paciente o de ter um atendimento digno, atencioso e respeitoso, ser identificado e tratado pelo nome ou sobrenome, não ser identificado por números, códigos ou de modo genérico, desrespeitoso ou preconceituoso, bem como o direito de receber informações claras, objetivas e compreensíveis[3].

Há que se respeitar os princípios éticos nobremente elencados no Código de Ética Médica. Há que se indignar pelo tratamento inadequado aos pacientes. Há que se buscar uma excelência nas relações humanas e nas relações entre médicos e pacientes. Essa busca e esse empenho dos bons profissionais e da cobrança da população pode ser um resgate da civilidade, da boa educação e da valorização do bom profissional médico.

Rosália Toledo Veiga Ometto é bacharel e mestre em Direito Civil (USP), especialista em Direito Empresarial (PUC/SP), professora convidada do curso de Especialização em Direito Médico e Hospitalar (EPD) e advogada militante na área de Direito Médico – Responsabilidade Civil e Procedimentos Administrativos, autora de livros na área. Email: rosalia@omettoadvogados.adv.br

Permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

 

 


 

[1] CFM, CEM. Princípios fundamentais, I - A Medicina  é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza. II - O alvo de toda a atenção do médico  é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.

[2] CFM, CEM. Cap. IV, Direitos humanos, art. 23. É vedado ao médico: Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.

[3] Lei Mário Covas. Lei Estadual 10.241, de 17 de março de 1999.

Artigo 2º - São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo:
I - ter um atendimento digno, atencioso e respeitoso;
II - ser identificado e tratado pelo seu nome ou sobrenome;
III - não ser identificado ou tratado por:
a) números;
b) códigos; ou
c) de modo genérico, desrespeitoso, ou preconceituoso;
VI - receber informações claras, objetivas e compreensíveis sobre:
a) hipóteses diagnósticas; b) diagnósticos realizados; c) exames solicitados; d) ações terapêuticas; e) riscos, benefícios e inconvenientes das medidas diagnósticas e terapêuticas propostas; f) duração prevista do tratamento proposto; g) no caso de procedimentos de diagnósticos e terapêuticos invasivos, a necessidade ou não de anestesia, o tipo de anestesia a ser aplicada, o instrumental a ser utilizado, as partes do corpo afetadas, os efeitos colaterais, os riscos e conseqüências indesejáveis e a duração esperada do procedimento; h) exames e condutas a que será submetido; i) a finalidade dos materiais coletados para exame; j) alternativas de diagnósticos e terapêuticas existentes, no serviço de atendimento ou em outros serviços; l) e  o que julgar necessário.

Autor

Rosalia Toledo Veiga Ometto

Data

09/11/2012

Advocacia como ferramenta de Percepção, Educação e Ação. Olhar no futuro, releitura do Direito com base na Ética.

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